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Banho rápido, café mais rápido ainda (ou pra quê café?).
Quando me lembro despeço-me da minha esposa (as vezes até com um beijo). Geralmente saio às pressas reclamando que por culpa dela vou chegar atrasado. No trabalho tudo começa bem. Deixei tudo organizado ontem e sei o que tenho que fazer hoje. Mas invariavelmente, dez minutos depois, chega aquele e-mail, e aquele outro, e mais outro, e meu foco se perde. O colega da mesa ao lado pede ajuda, o telefone toca, o Whats não para e as reuniões se amontoam.
Saio para almoçar na hora perfeita, quando tudo é fila. Fila pra se servir no buffet, fila pra encontrar mesa, fila pra pegar o sal e o guardanapo, fila pra pagar. Ticket quase no fim, mas tem ainda um trocado pra comprar aquele chocolatinho e balinha, tão bem posicionados no balcão do caixa. Meia hora depois estou de volta na minha mesa; ou menos de meia hora, quando pelo Whats alguém me avisa que precisam de mim em uma reunião agendada às pressas. Nesse momento a dor de cabeça já perdeu toda a timidez (ou todo o respeito).
Durante a tarde a história se repete, quando não piora. Seis da tarde, sete, e ninguém vai embora: continuam na mesma corrida maluca, encontraram finalmente tempo para fazer o que haviam planejado ou não querem ser vistos como desmotivados.
Depois vem trânsito, novela, comida descongelada, jornal. As notícias ruins fazem parecer que, também no mundo, nada, ou pouca coisa, vai bem. Em casa o celular continua meu inseparável companheiro, afinal alguma coisa de interessante sempre acontece na vida de algum estranho, ou conhecido distante, e não posso deixar de ser o primeiro a curtir. As vezes esse companheiro digital traz até uma bomba do trabalho, e, se eu não estiver conectado posso perder a sublime chance de antecipar a dor de cabeça de amanhã cedo!
E assim passam os dias, os meses e anos. Em algum momento, ou em vários, nos sentiremos cansados, vazios, sem propósito ou mesmo alegria, náufragos no oceano da vida, agarrados à boia das nossas rotinas, sonhando em algum dia encontrar a praia da felicidade.
Um grande amigo meu, muito antes da palavra gamificação ser chique, costuma dizer que vivemos num grande jogo. É mais ou menos assim: durante a nossa infância, enquanto estamos encantados com a descoberta maravilhosa da vida e do mundo, começa nosso treinamento. As regras são claras: temos que obedecer, parar de chorar, dividir, ir à escola, tirar boas notas, passar de ano, ser melhor que a média em incontáveis matérias.
Ganhamos prêmios: presentes, viagens, abraços e até amor. Na juventude encaramos o dilema de decidir “o que queremos ser quando crescer”. Depois disso deixamos de ser “Fulano de Tal, pai, marido, cara do bem que gosta da natureza e de ajudar as pessoas” e passamos a ser “Fulano de Tal, advogado, engenheiro, administrador”.
Vem então o estágio, o primeiro emprego, promoções, bônus, carros, casas, viagens. A regra do jogo nos insere numa rotina sem fim de ter que fazer sempre mais para ter sempre mais. Quem sabe assim seremos vistos, respeitados e amados.
A escritora e poeta Annie Dillard disse certa vez, seguindo a mesma linha de Aristóteles, que “como passamos os nossos dias é como passamos as nossas vidas”. E essa é a mais pura e completa verdade.
Mas será que temos escolha? Não somos obrigados a respeitar as regras desse jogo para honrar as nossas crescentes obrigações e responsabilidades?
Colunista Henrique Bueno
Contatos: lnk.bio/9cVF
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